O Labirinto do Fauno: do lirismo de Peixes à violência de Plutão

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No pano de fundo da Espanha fascista, em plena Segunda Guerra Mundial, a imaginação de uma menina de dez anos cruza o caminho de um capitão cruel e implacável. O Labirinto do Fauno é uma fábula ao mesmo tempo lírica e violenta, que tematiza as contradições e possibilidades contidas no simbolismo de Peixes, o mais labiríntico de todos os signos.

Magia: uma criança descobre uma borboleta, que pode se transformar em fada, guiando-a para adentrar em fantásticos mundos.

Crueldade: um capitão fascista é implacável na perseguição dos seus inimigos. Desconhece o que são empatia e sentimentos. Mas tem poder, subordinados e armas.

Os caminhos do capitão e da criança irão se cruzar. O que poderá acontecer? Quem irá vencer, a força bruta ou a imaginação infantil?

O que são labirintos

Todo labirinto tem um local onde se pretende chegar, uma espécie de núcleo. Para alcançá-lo, há várias combinações de caminhos e não é possível saber, de antemão, qual delas irá levar ao objetivo. Isto só seria possível se fosse visto de cima. A lógica e a razão pouco podem fazer nos labirintos. De alguma maneira, é preciso ativar um sentido que não costuma figurar dentre os outros: a intuição, que é a capacidade de colher informações através de uma via não racional. A intuição é simplesmente um saber ou um adivinhar. Algo se agita dentro como se fosse uma certeza, que pode ser acolhido ou não.

Para ingressar em um labirinto, é preciso ter um objetivo, se não o de alcançar algo no interior dele, pelo menos o de conseguir sair. Labirintos podem ser perigosos, pois a possibilidade de se perder é muito maior do que a de se achar. Se forem pequenos, a única perda será a de tempo. Quando grandes, pode-se perder a vida. Além disso, talvez seus corredores tortuosos escondam surpresas.

Labirintos remetem ao signo de Peixes, o mais misterioso dos doze. Peixes é o único a ter a visão total do conjunto, o que tornaria a travessia de um labirinto uma brincadeira de criança. Mas como o ser humano não consegue racionalmente acessar o todo (em geral, é apenas capaz de senti-lo por fugazes momentos), precisa empregar outra ferramenta de Peixes, que é a capacidade intuitiva. Peixes como arquétipo (não como indivíduo) tem acesso a tudo, não existindo, para ele, nenhuma informação secreta. Representa a intuição que irá captar o que não está acessível à razão e também a possibilidade de conexão com o todo.

No filme O LABIRINTO DO FAUNO, de Guillermo Del Toro, a menina Ofelia entra e sai do labirinto com a maior facilidade. Ela está muito próxima de atributos piscianos, como imaginação, sensibilidade e também aventura (pelo fato de Peixes ser co-regido pelo planeta Júpiter, significador de expansão). Ofelia viverá uma aventura com destino a sua própria alma. A menina faz, sem o saber, uma busca por significado em um mundo carente de explicações para acontecimentos como perdas, mortes e brutalidades.

Labirintos parecem corresponder à viagem do ser humano para dentro de si mesmo. Há muitos caminhos – religião, psicanálise, arte, ciência – e nenhum deles é absoluto, tampouco garantido. Uma das razões é porque talvez porque haja um labirinto para cada aventureiro, e somente ele possa descobrir seus caminhos.

A aventureira

Ofelia é a protagonista deste filme fantástico, cuja história se desenrola em 1944. Tem dez anos. Nem tão criança que não perceba as verdades – tantas vezes amargas – dos adultos, mas ainda sem ter formado a quase sempre rígida espinha dorsal deles. Está imantada da abundante energia infantil, que ainda acha que tudo seja possível e que se encontra protegida. A fé e a magia de Peixes seguem com ela através de um território cada vez mais rude, inóspito e cruel. Sua essência, porém, não responde à lógica do tempo e da realidade que habita, particularmente a de agir como um tirano ou uma vítima. Ainda que Ofelia seja, na prática, vítima, em nenhum momento se sente, de fato, deste modo. Ela está sempre tentando extrapolar os limites, nunca se vendo contida por eles.

Ausência de limites – seja para transcender ou escapulir – é algo pisciano. Mas o que é transcender? Transcender, de algum modo, é superar. Sutilmente, suavemente, mas, sem dúvida, superar. Só pode transcender quem for maior ou mais largo por dentro do que os eventos com os quais se depara fora.

Peixes (e Netuno, seu regente), como arquétipo, não enfrenta nada diretamente e nem tem a pretensão declarada de mudar o que quer que seja. Mas ele em si só já é a mudança. Acaba por mudar ou afetar tudo o que toca. Suaviza, dilui os contornos, altera a forma, rouba algo da rigidez, a qual desgasta, deforma e, ao final, reforma. Ofelia, mesmo que não faça nada e tente ficar somente no seu lugar de fantasia, incomoda ou encanta: é difícil lhe ficar indiferente. Ela invade o espaço em que chega, transformando-o. Revolução igual ocorrerá dentro dela.

O começo

O ingresso definitivo de Ofelia na realidade fantástica ocorre através do encontro com um fauno, uma figura híbrida, meio animal, meio humana, sem correspondência com o que possa haver no reino físico conhecido. O fauno conta que ela é a filha perdida de um rei, que um dia fugiu de casa, partindo o coração do pai, mas que este nunca perdeu a esperança em seu retorno, e que a aguarda, não importa com que forma ela regresse. Órfã de pai e mandada para junto do padrasto brutal, a menina tem seu coração capturado por essa história e dá a ela crédito imediato.

O pai oculto é uma metáfora de Deus. É amoroso, ilimitado e a espera. Ela teve com ele uma história da qual não se lembra, mas na qual acredita. E quando Ofelia se encontrar com seu pai, não saberemos como será o encontro, o que acontecerá, assim como não saberemos como e quando será nosso próprio encontro.

Contrastes e paradoxos

Peixes pertence ao ritmo Mutável, caracterizado pela duplicidade. É o ritmo que encerra os paradoxos, as coisas não resolvidas de uma única maneira. O LABIRINTO DO FAUNO está profundamente estruturado nesta dinâmica. Tem por marca a mistura do mágico e incrível com o grotesco e implacável, tornando natural que lindas fadas possam ser mastigadas e engolidas, e que encantadoras crianças possam ser doentiamente perseguidas. Sua mola propulsora são os contrastes e os paradoxos típicos dos signos mutáveis (Gêmeos, Virgem, Sagitário e Peixes). Isto é particularmente visível no fato de que quanto mais Ofelia penetra no fantástico universo paralelo mais densa e insuportável se torna a realidade ao seu redor. Ou seria o contrário?

A realidade pode ser colocada como um princípio pertencente à Virgem, signo oposto e complementar a Peixes. Assim, quanto mais Ofelia fortalece a si mesma e ao seu mundo interno (algo pisciano), mais a sua vida real desmorona, como se suas convivências concomitantes fossem incompatíveis no momento específico que ela vive. Somente Ofelia não percebe que parece haver um fio invisível fazendo com que a roda gire inexoravelmente neste descompasso, tornando impossível unir a magia à integridade física. Ela, tendo a ingenuidade de um representante de Peixes, não nota que quanto mais abissais forem suas descobertas, maiores, aparentemente, serão os preços a serem pagos por elas. E que quanto mais abastecida interiormente ela estiver, mais se aproximará de ter de enfrentar o que mais teme, seu padrasto capitão.

Depois que a pequena borboleta a atrai, não existe mais retorno. A menina será incitada ao movimento por sua própria curiosidade e encantamento. Doce ilusão a de que houve qualquer escolha quando se tratava de uma criatura tão sonhadora. Peixes parece representar as histórias (e até a falta delas) a que estaremos fadados a viver por nosso temperamento.

Como filme pisciano, O LABIRINTO DO FAUNO contém infinitos jogos de espelhos, em que muitas coisas não são o que pareçam, a começar pela abertura, que se assemelha a de tantos outros filmes em que parece ter sido dada a certeza ao espectador de que o protagonista viverá algo mágico, que correrá muitos riscos fictícios, que parecerão bastante reais, mas que no final tudo dará certo. Entretanto, contra esta idéia idílica, soa suspeita a insistência ríspida de uma mãe quase histérica em mostrar a realidade à filha. Esta mãe, que fala de forma amargurada sobre a realidade, não tem o toque cômico e maniqueísta que os adultos de filmes infantis costumam ter. Há realismo demais no seu rosto cansado e na sua gravidez avançada. Ela atravessa uma floresta em tempos difíceis, de guerra, para alcançar um marido que mal conhece.

É neste momento que a protagonista encontra a tal borboleta, um símbolo da transformação que a aguarda. A mãe, Carmen, na condição de grávida e futura esposa de um capitão, também está vivendo uma transformação. Mas, diferente de Ofelia, não está encantada, e sim, fazendo algo que vê como prático: indo ao encontro de um homem para proteger a si mesma, a filha e a criança que nascerá. Enquanto Ofelia teme o destino da viagem, sua mãe anseia por ele, em interpretações diametralmente opostas do que é melhor a ser feito naquela situação. Puro Peixes, posto que este signo representa as múltiplas visões que se pode ter da realidade. Qual estará mais certa? Em um momento de guerra, existe alguma coisa que seja, realmente, mais segura?

Mãe e filha estarão sempre em pólos contrários, sem nunca conseguirem se entender, apesar do amor que as une. A mãe encarna Virgem, signo da realidade, oposto a Peixes, relacionado à fantasia e que representa Ofelia. A realidade tem limites, e Carmen irá vivê-los. A fantasia é ilimitada, e Ofelia irá experimentá-lo. Ambas irão provar até o fim as consequências das suas próprias crenças.

O LABIRINTO DO FAUNO não será um filme fácil. O espectador é conquistado aos poucos, como se a própria Ariadne lhe desse o novelo capaz para entrar no labirinto e conseguir sair dele.

A psicologia de um tirano

O capitão desgosta de Ofelia já na primeira cena em que os dois se encontram. É chocante a forma rude como aperta a mão da enteada, fulminando-a com os olhos. É alarmante que a pouca idade de Ofelia não o comova. Ele a enxerga como um potencial inimigo, como condiz a um tirano pensar.

O capitão fascista é o oposto exato de Ofelia. A menina é toda sentimento e fluidez. Está voltada apenas para o presente, distraindo-se com tudo o que cruza o seu caminho, enquanto o seu opositor é frio e objetivo, para não dizer cruel e implacável, focado em eliminar do seu caminho tudo o que possa ameaçar o seu futuro, o qual deseja que seja triunfante e poderoso. Seu ego distorcido não permite que nada tenha vida ou liberdade ao seu redor, e a menina é plena disso. Ele submete a mãe de Ofelia já no início às suas regras, obrigando-a a locomover-se em uma cadeira de rodas, apesar de a mesma estar apenas grávida e não doente, o que ela ficará com o tempo. O capitão está tomado pelo arquétipo do tirano, cuja maior necessidade é o de apenas ele existir. Seu objetivo é o de tentar transformar a todos ao redor em pálidas sombras rastejantes. Esta é a única maneira de assegurar as ilusões a respeito de si mesmo e a manutenção do poder.

Como o tirano tenta matar as individualidades, também tem a sua própria individualidade esvaziada, e por isto todos os tiranos se parecem imensamente entre si. A filosofia de um déspota é sempre rígida, esquematizada e hierárquica. Além disso, tem dentro dele uma vítima em potencial, pois seus atos convergem em eliminar as supostas ameaças, as prováveis pessoas que tentariam prejudicá-lo. Esforço em vão, pois cedo ou tarde tiranos ou seus descendentes são depostos, submetidos à roda da vida, nem que seja para trocar um grupo por outro.

Como ele não quer que nada exista além de ele mesmo, o tirano devora sistematicamente o que há ao seu redor. Em O LABIRINTO DO FAUNO, haverá um momento em que o capitão sofrerá um feio ferimento na boca, que irá deixá-la descomunal. É a boca insaciável de um gigantesco tirano ameaçado. Ele também guardará grande semelhança com um ser repelente que Ofelia encontrará em uma de suas aventuras, que se alimenta de carne humana. Na realidade, de qualquer coisa, como um tirano. O tirano busca o poder como forma de transcendência da condição frágil de se estar em um corpo humano. É um Deus às avessas, tentando conter e controlar o que não é possível.

Carmen e Mercedes: faces diferentes de uma mesma moeda

Além dos pares Ofelia-Carmen e Ofelia-Capitão, um outro par marcante em O LABIRINTO DO FAUNO é Carmen-Mercedes, ambas representando o arquétipo de Virgem, mas de formas diferentes. As duas são realistas, mas Carmen está seca, enquanto que Mercedes pode não acreditar nos delírios da menina Ofelia, mas de alguma forma não critica seu mundo infantil. Carmen, também, vai ficando cada vez mais doente e incapacitada (Virgem pode ser a doença), enquanto Mercedes é ativa e dotada para o trabalho (um uso produtivo de Virgem, portanto). É tão saudável que pode trabalhar duro e ainda lhe sobrar energia para desenvolver uma atividade clandestina, logo percebida por Ofelia. A atividade secreta é o lado idealista, e, portanto, pisciano de Mercedes. Mercedes é a única personagem a não representar somente uma polaridade em O LABIRINTO DO FAUNO. A única, portanto, integrada, e, talvez, não por acaso, aquela que conseguirá sobreviver aos desmandos da guerra civil.

Retornando ao par Carmen e Mercedes, a primeira vive o pólo da crítica e da doença de Virgem, enquanto a empregada de confiança (não por acaso, Virgem rege os empregados) representa este signo sendo realista, prudente e eficiente. Diferente de Carmen, que de alguma forma se sente derrotada pelas circunstâncias, tanto que vê no casamento com o capitão sua única saída, Mercedes ainda luta pelo que acha que é certo: a proteção do seu irmão e a ajuda ao seu clã e amigos.

No momento em que escrevo este artigo, Saturno em Virgem se opõe a Urano em Peixes, simbolizando uma intensa disputa entre os limites e a libertação, entre o velho e o novo, o sensato e os apelos dos sentimentos, temáticas presentes em O LABIRINTO DO FAUNO. Estes dois signos também estão ligados ao que conseguimos transpor para a realidade. Conseguiremos fazer com que nossos ideais um dia existam? Derrubaremos o velho (no caso, o capitão) para instaurarmos uma nova ordem? Acaso não foi o que Ofelia e Mercedes tentaram fazer durante o filme inteiro?

Pano-de-fundo lúgrube

Embora “O Labirinto do Fauno” tenha uma forte temática Virgem-Peixes, é impossível ignorar a presença de Escorpião no filme. Faunos, reinos subterrâneos, tiranos, sapos que vampirizam árvores, monstros insaciáveis e até transformações pessoais são todas representações deste signo. As coisas terríveis que acontecem no filme – guerras, decepações – também. Ofelia tem de se adaptar a este cenário. A protagonista existe em um dos anos mais difíceis da história da humanidade, 1944, época em que o planeta da morte, Plutão, que rege o signo Escorpião, transitava sobre o signo da alegria – Leão – e também da infância. Nos anos em que Plutão transitou por Leão a exuberância natural deste signo foi substituída por escassez, medo, incerteza e arbitrariedades. Os tiranos – expressão deformada da forte personalidade leonina – existiam em profusão, por isto não é surpresa que Ofelia tenha de se haver com um.

A certa altura do filme, o grupo de Mercedes consegue render e matar o capitão. Entretanto, quem realmente o minou foi Ofelia, com suas atitudes que ele não podia compreender. Ele podia ordenar e coordenar tudo, menos os estranhos impulsos de uma criança morando em sua própria casa. Por mais que tentasse colocar regras na menina, de alguma forma esta sempre escapulia e não seguia a sua lógica estrita. Podemos resumir isto como um embate entre Saturno em Virgem – as regras, as ordens, a subordinação – e Urano em Peixes – a vítima que se rebela e surpreende. Nas nossas vidas, estes dois planetas podem nos perguntar o quanto estamos vivendo por força do hábito (Saturno em Virgem), por regras que talvez nem saibamos se ainda valem, e o que a nossa alma realmente quer (Urano em Peixes). Mas também como separar o joio do trigo, o possível do impossível, o real dos delírios.

Mas, voltando a 1944, Saturno estava em Câncer. Saturno é o princípio da realidade, colocado no signo do afeto e da família. Naquele cenário e naquele momento, Saturno em Câncer tinha conexão com as muitas crianças órfãs e os desmembramentos das famílias. Se a menina tem 10 anos, porém, podemos inferir que tenha nascido em 1934, e neste ano Plutão ainda estava em Câncer. De alguma forma ela tinha em seu destino (Plutão tem um componente de destino) passar por dramáticos acontecimentos em seu núcleo familiar (Câncer). No filme, ela sofre a perda do pai. Mas também lhe é revelado que ela tinha outro pai, uma outra família (Câncer) oculta, desconhecida (Plutão rege o que não sabemos) vivendo abaixo da superfície (Plutão, na mitologia, é o senhor dos reinos subterrâneos), aguardando o seu retorno, não importa com que forma ela viesse. É Plutão quem não liga para a forma, pois sabe que a essência sempre permanece intacta, não interessando qual corpo habite. Ocorre, porém, que ao ter um pai oculto poderoso, Ofelia tem de enfrentar o homem mais poderoso que conhece – o capitão.

Imaginação e fé: características de Peixes

O pai oculto pode ser um dos mecanismos compensatórios típico de Peixes. Da mesma forma que o capitão pode representar algum grande desafio para a alma, que está sendo enfrentado com os atributos de Peixes, imaginação e fé. Nos anos em que descem sobre os destinos coletivos poderosas forças destrutivas, o que fará com quem sejam enfraquecidas, quando então parecerem intransponíveis? O que irá corroer o poder que esteja sendo destruidor até que um dia se enfraqueça e se torne caricato?

Peixes é também o signo relacionado aos substitutivos ao que temos. Assim, se perdemos o pai de carne e osso, teremos um pai indestrutível, se perdemos o corpo, nos sobrará o espírito. Se não podemos ser pais ou mães biologicamente, que sejamos de coração. Peixes parece ser a capacidade infinita de compensar e substituir, usada para sobreviver, e, quem sabe, após isto, viver. Esta é a grande temática da vida de Ofelia. Nos tensos anos de guerra, em que desvario e destruição se espalhavam e era muito difícil divisar quando o mundo voltaria ao normal, para prosseguir era preciso acreditar que um dia seria melhor. Melhor como? Ninguém sabia. Eis a fé mais difícil de todas, pois está baseada em algo que sequer apontou ainda no horizonte.

Ofelia tem fé sem precisar realizar nenhum esforço. A ausência de esforço também é algo relacionado a Peixes, que rege as águas que brotam do chão ou as coisas que vêm sem que as tenhamos conscientemente buscado. Enquanto o mundo se divide em inimigos que se destroem e se perseguem, a menina conversa com um fauno, corre atrás de borboletas, passa as mãos por livros em branco e vê letras e símbolos se desenharem imediatamente. Para a sua mãe, cansada e derrotada, a filha soa extravagante e perigosamente alienada.

Ocorre que Ofelia está sintonizada com seu coração, enquanto sua pobre mãe renunciou a ele. Por vezes, renunciar ao coração é uma forma de o corpo sobreviver, mas com um alto custo para a alma. Ofelia quer sua alma. No final, mãe e filha, que fizeram escolhas opostas, acabam, ambas, sacrificadas (Peixes), mas a segunda leva junto o capitão. Mercedes o matou, mas foi Ofelia quem o levou para o labirinto, onde ele ficou algum tempo preso, permitindo ao grupo contrário a ele emboscá-lo. Cada um dos personagens tem o final perfeitamente coerente com tudo o que plantou, e conquanto mãe e filha morram, a primeira pereceu de seu próprio cansaço e desesperança, enquanto a segunda, que era criança, precisou ter o seu corpo perfurado por uma bala. É de se perguntar, com base nisso, se Ofelia era realmente tão frágil quanto parecia e, se não, que tipo de força a inspirava.

O teste iniciático

No início do filme, é proposta a Ofélia uma prova, depois que ela ouve que seria a filha amada fugida de um rei. Trata-se de um teste iniciático, o que pode ser resumido como as dificuldades que a alma tem de ultrapassar com o fito de fortalecer a si mesma ou de se encontrar. Só um ideal, uma grande motivação, nos faz aceitar um teste iniciático. Para Ofelia, este motivador é o mito do rei-pai, aquele que irá devolver a ela a dignidade e o poder perdidos há muito, muito, tempo. Um tempo tão grande que ela nem se lembra.

Ideais de todos os tipos (humanitários, religiosos, amorosos, materiais, etc.) fazem parte de Peixes. Aliás, não seria exatamente o raciocínio o que nos diferenciaria dos animais, mas a criação de ideais e a possibilidade de se mover com base neles. Ofelia tem uma coragem crescente porque sua fé é proporcional. Faz coisas que em sã consciência jamais realizaria, pois o ideal que carrega no coração a inspira a avançar.

O poder do ideal é tão forte que antes mesmo que ela possa entrar no seu reino e ser recebida por um pai amoroso, Ofelia já é princesa. O ideal existe em um lugar não manifesto como se fosse a semente de uma possível realidade, pronta para germinar.

O teste iniciático começa quando o fauno apresenta as três provas a serem cumpridas para que Ofelia possa regressar ao seu reino. Na primeira, ela tem de enfrentar a sujeira e o nojo ao fazer contato com um sapo gigantesco, que parasita uma árvore. Ela cumpre a tarefa com surpreendente estoicismo. Como as provas do fauno remetem a um teste iniciático, de cunho espiritual, pode-se dizer que a primeira delas tem a ver com a exploração do mundo interior, que por vezes é semelhante ao de Ofelia, com suas coisas feias (como o enorme sapo) e encantadoras (como as lindas borboletas e os livros que se escrevem com o toque de sua mão). Assim, o primeiro teste iniciático parece dizer respeito a conhecer a si mesmo, suas compulsões, falhas e abismos. O lado feio de si mesmo, mas para o que, ironicamente, a menina utiliza suas melhores ferramentas (seus novos recursos mágicos).

Na segunda prova, ela tem de cumprir uma tarefa em uma sala em que há uma feia criatura, imóvel como estátua, diante de um terrível banquete de iguarias humanas. A menina é alertada de que não deve comer nada, pois isto significará um grande perigo. Quando enxerga apetitosas uvas, Ofelia se esquece do conselho, e mordisca uma uva atrás da outra, de grão em grão acordando a terrível criatura. É neste ponto que qualquer resquício de lúdico e infantil no filme se rompe, pois o espectador supõe que Ofelia não será comida, mas por um triz ela não é pega, e sua desobediência às instruções do fauno irá lhe custar um longo afastamento dele.

Esta segunda prova parece estar ligada a duas verdades da espiritualidade. A primeira é a lei da causa e efeito: Ofelia é alertada sobre o perigo, mas ignora a mensagem, logo, sofre as consequências, que é o despertar do monstro. Mas ela também está sendo testada na sua capacidade de controlar a negatividade. No caso, a gula. Muitas vezes, sabemos o que é o melhor a fazer, mas na hora em que somos postos à prova conseguimos? Parece fazer parte do caminho espiritual um sem número de vezes em que a pessoa repete os mesmos erros e muitos momentos em que se sente perdida e desprotegida, como Ofelia ficou depois que o fauno disse que iria abandoná-la por não tê-lo ouvido.

O fauno, aliás, é uma figura curiosa, bem afeta ao universo espiritual, em que nem sempre se pode ter certeza, a priori, se algo é bom ou mau, se irá ajudar ou desviar. O fauno nunca perde a ambigüidade, com seu jeito de ser persuasivo e fugidio. No fim, percebe-se que esteve a serviço do bem, mas seu papel ali era o de despertar e também testar, incumbência muitas vezes realizada pelos mestres, ou, mesmo, pela própria vida.

A última prova de Ofelia

A terceira prova é levar seu irmão recém-nascido para o centro do labirinto. É árdua a tarefa de enganar um padrasto ciumento e violento. Como não dispõe de força física, a menina coloca um sonífero – um expediente pisciano – na bebida do capitão. Ele tem um corpo forte e fica lento, mas não dorme, e persegue Ofelia com todo o ódio de quem foi rasgado por uma empregada e enganado por uma criança. Neste ponto da história, parece-se muito com o monstro do banquete. Está furioso, porque aqueles de quem menos espera são capazes de lhe dar os piores golpes (algo que bem poderia ser uma expressão de Urano em Peixes).

Na curta aventura de Ofelia, acumulam-se inexoravelmente erros e danos, como se ela não tivesse apenas dez anos. Talvez porque sua alma não o tenha. Ela corre e finalmente adentra o labirinto. Mercedes, que fugiu depois de ter ferido o capitão, a procura. Ainda que lento e atrapalhado por causa do sonífero, fica claro que o capitão fatalmente alcançará a enteada. Irá encontrá-la no centro do labirinto, onde uma bizarra criatura está lhe propondo que derrame o sangue de um inocente, o bebê, para finalmente ser admitida no reino do Pai.

Neste momento do filme, começa dolorosamente a se separar a fantasia de Ofelia da realidade, que até então estiveram tão misturadas. Ofelia enxerga um fauno, com quem conversa, enquanto o capitão vê a louca filha da falecida esposa segurando seu filho. E há um terceiro ponto de vista, o do fauno, que tenta persuadir a criança a fazer o gesto que permitirá que tenha o que tanto sonhou. Esta longa cena termina com o capitão atirando na garota que fala sozinha e que roubou o seu filho.

Aparece o rosto pálido do início do filme. Um rosto que verte sangue pela boca e pela mão. A mão que aponta para um poço: o mundo subterrâneo que sempre acompanhou Ofelia, e para o qual ela desejou tanto ir. O vermelho vivo e quente contrasta com a morte petrificada nos seus olhos de criança.

O capitão escapa do labirinto, mas não de Mercedes, que o aguarda na saída, junto com seu grupo. Ele é obrigado a entregar o bebê, mas roga que contem ao menino quem foi seu pai. Mercedes nega seu último desejo e o mata. O ser humano que o habita aparece fugazmente neste fim, na surpresa e na fragilidade do esvair de sua vida, experimentando rapidamente o que fez aos outros tantas vezes na sua existência. Mercedes corre até Ofelia, mas já a encontra morta. Mais uma pessoa destruída em um tempo de arbitrariedades e loucura… Uma criança a quem amava e que confiava nela para ser resgatada.

O filme mostra Ofelia chegando em seu reino. Na realidade, somente a filha de um rei teria a nobreza de não matar um inocente. Foi o seu sangue inocente que descerrou as portas do ansiado paraíso. Antes de estar ali, Ofelia teria renunciado ao seu sonho e a sua vida por causa de um irmão que custou a sua mãe, a qual agora está ao lado do rei, o verdadeiro pai (Deixo a cargo dos leitores decifrar o significado do terceiro teste iniciático, posto que este artigo, afinado com Peixes, nem tudo revela). Eles cumprimentam a filha e a recebem. Enquanto isto, um corpo de menina jaz sem vida, vertendo sangue pela boca e pelas mãos…

Cabe a cada um acreditar se Ofelia criou um mundo próprio para se refugiar da dura realidade, e acabou morta pela fantasia ao tentar resgatar o irmão, ou se ela é mesmo a filha de um rei poderoso, para quem finalmente regressou. E o que é vida e o que é morte, afinal.

Uma plangente cantiga de ninar toca, ora velando o corpo sem vida de uma criança que tentou proteger o irmão, ora coroando a almejada chegada de uma princesa perdida ao seu reino.

3 comentários sobre “O Labirinto do Fauno: do lirismo de Peixes à violência de Plutão”

Olá Vanessa,

virei fã dos seus artigos sobre os filmes. São explicativos, interessantes e minuciosos. Excelentes! Eu gostaria de sugerir e até tenho a curiosidade particular de ver um artigo sobre o filme “Na Natureza Selvagem” (Into the Wild do Sean Penn) e Urano. Visto que, de fato, o filme é baseado na vida real de um homem que era aquariano.

Oi, Tatiana! Obrigada pelos comentários! Eu adoro escrever sobre os filmes e quando um filme me impacta muito tenho vontade de escrever. Vou olhar o filme que você sugeriu. Um abraço grande e obrigada pela visita!!!!

Parabéns!
Você é verdadeiramente vocacionada! Tem um dom indiscutível para o que faz! Os artigos que escreve são objetivos, esclarecedores e, principalmente, inspirados.
Me tornei sua fã. Obrigada pela contribuição valiosa que oferece aos amantes da Astrologia.
Flávia.

Namastê.

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